sábado, 22 de janeiro de 2011

SOBRE VIDA, MORTE E LIXO

David Moreno Montenegro[1]

Rodolfo Teófilo[2], escritor de estilo singular das letras cearenses, teve seu primeiro livro publicado em 1890, intitulado A Fome: Cenas da seca no Ceará[3]. Nesta obra, que já revelava a maturidade da escrita do autor em busca de um estilo próprio de construção do texto[4], que melhor refletisse as fortes influências exercidas pela realidade nordestina e das vicissitudes da vida sertaneja tão bem conhecidas pelo autor, encontramos uma poderosa prosa que revela, por traz de suas palavras por vezes secas e diretas, e de um Nordeste retratado de forma cinzenta, abandonado e heróico, um quadro perverso representado através de gradações espectrais da desnutrição e da penúria, com seu caudal de verdades sociais e econômicas aviltantes e incômodas, um Estado assolado por epidemias e fome em fins do século XIX[5].

A certa altura do romance desencadeia-se uma série de eventos, por vezes contraditórios, impulsionados a partir do descobrimento, por parte da comunidade local, do cadáver de Quitéria, uma misteriosa feiticeira, que tinha seu corpo entregue aos vermes que a corroíam no interior de sua própria casa. Diante dum grave quadro social que vivia o nordeste, em especial o Ceará, em virtude da prolongada seca daquele ano e dos surtos epidêmicos, sobretudo de varíola, que varreram desta terra multidões de sertanejos, põe-se o dilema de como retirar e livrar-se do cadáver da feiticeira, que já apresentava avançado grau de decomposição, uma vez que não se sabia ao certo as causas de sua morte, que podiam desde estar ligadas a desígnios sobrenaturais (desconfiou-se de manifestações demoníacas) a causas relacionadas ao surto de varíola, ou mesmo ao quadro desalentador de fome que chegou a matar famílias inteiras, inclusive promovendo aterradores atos de canibalismo antropofágico. Faço referência, aqui, à cena digna das melhores tragédias dantescas aonde um personagem de seu romance, chegado ao estado limite de alucinação provocado pela fome, chega a conservar por três dias o corpo de uma criança morta, de cuja carne passou-se a servir como sustento.

O corpo deveria ser removido daquele lugar. Mesmo ameaçados pelas autoridades policiais, os carregadores de defuntos somente foram capazes de conduzir aqueles restos cadavéricos ao cemitério, situado fora da cidade, através do embotamento de suas sensibilidades causado pelo consumo exagerado de cachaça, numa grotesca transmutação Kafkaniana de homens à condição de animais (corvos, esta foi a expressão utilizada pelo autor), que naturalizados e totalmente despidos de pudores pertencentes apenas ao mundo dos homens, deram cabo do promíscuo e medonho trabalho, e com as próprias mãos juntaram cada pedaço da feiticeira. Enterrá-la significaria desfazer-se de um corpo já sem vida capaz ainda de ameaçar aqueles que vivem, corpo que representaria foco de impureza e contaminação, cujo estado de degradação causa repugnância até mesmo naqueles mais acostumados a ver de perto os efeitos reais causados pelo inexorável e ao mesmo tempo mais temido e angustiante destino humano - a morte.

Das páginas romanescas de Teófilo para as tragédias da vida urbana brasileira, seria possível identificarmos, em nossa sociedade, a tendência em transformar indivíduos em seres abjetos, alvos de profunda repulsa social? Invoco, aqui, a imagem de um homem que dormia sobre a calçada de um luxuoso edifícil, ao lado da lixeira condominial, com uma enorme carroça de tração humana estacionada ao seu lado repleta do que pareciam ser materiais para reciclagem. Não seria aquele homem também um carregador de cadáveres a exemplo dos carregadores de defuntos de Teófilo, no entanto com a peculiaridade de debruçar-se não sobre a carne podre de corpos humanos mas sobre os restos expurgados pelo consumo, rejeitos estes que teriam, ao contrário do cadáver da obra literária mencionada, não como destino final a inumação num cemitério qualquer, mas quiçá a permissão, uma vez ressurectos do mundo dos mortos, de retornar ao sacro mundo da produção e do consumo por meio de um processo conhecido, contemporaneamente, por reciclagem? De todo modo não estaríamos diante de homens, cada um à sua maneira, responsáveis por expurgar do convívio social aquilo que entendemos por ser indigno, degradado ou mesmo inútil?

Quando foi percebido deitado sobre a calçada por um dos moradores do edifício, o homem foi sumariamente despertado pelo condômino que, utilizando a sola dos sapatos, fez pressão sobre suas pernas acordando-o, momento em que ordenou que se retirasse, obrigando-o a atravessar a rua onde ficou por alguns minutos até a chegada do caminhão coletor de lixo urbano. Então ficou claro o que aquele homem fazia ali estirado. Descansava enquanto esperava a chegada do caminhão coletor de lixo, pois ao ser aberto o compartimento que armazenava o lixo do condomínio e despejado no interior do veículo, o homem atirou-se vorazmente tentando retirar a maior quantidade possível de materiais recicláveis, antes que fossem engolidos de uma só vez pela máquina devoradora de restos.

Não obstante o impacto da cena do homem mergulhando sobre o lixo, a manifestação de desprezo do morador ao utilizar os pés para acordar o catador e sua posterior atitude de expulsá-lo da calçada do edifício impõe uma inevitável reflexão: não seria esta atitude de expulsão de um corpo que se colocara indevidamente sobre a calçada, maculando-a, cujo único toque que recebeu foi dado com a sola dos pés, um procedimento semelhante ao adotado em relação ao lixo que estava sendo descartado por aquele condomínio, que da mesma forma causava repulsa e impunha a necessidade imperiosa de ser retirado? Seria o catador, aos olhos daquele morador, um indivíduo déclassé, a sobra, o refugo[6] que deveria, assim como o lixo de seu condomínio e o cadáver da enigmática feiticeira Quitéria, da obra de Teófilo, ser afastado, descartado? Até que ponto os pormenores mais viscerais de uma verdadeira tragédia humana são obras da criação do romancista e até que limite será documental duma época histórica, trata-se de terreno insólito que não imbui de grandes certezas os contemporâneos que se arrisquem a mover-se por estas paragens. Não obstante, pergunto- me o que nos diria o nobre escritor, se concedido a ele fosse o milagre de retornar do mundo dos mortos, ao se deparar, com a sensibilidade de seu olhar, com a peculiar forma como as classes mais abastadas de nossa sociedade tratam determinados homens vivos como se mortos estivessem... Ou dizendo de outro modo... Como se lixo fossem...



[1] Cientista Social, Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará – UFC e professor de Sociologia do IFCE. Pesquisador do Centro de Estudos do Trabalho e Ontologia do Ser Social (CETROS). E-mail: davidmmontenegro@hotmail.com

[2] Segundo Otacílio Colares, Rodolfo Marcos Teófilo é, indubitavelmente, o mais representativo escritor do Ceará de todos os tempos. Sua obra literária, que não é considerada modelo em parâmetros estilísticos, é, em compensação, do ponto de vista regional, sempre tão valorizado pela história e críticas literárias, uma espécie de vultoso monumento em torno do qual, com o passar do tempo, têm vindo abeberar-se ficcionistas e sociólogos de todo o Nordeste brasileiro, até os nossos dias. Ainda sobre a obra de Rodolfo Teófilo consultar: COLARES, Otacílio. Introdução Crítica: Fome e Peste na Ficção de Rodolfo Teófilo. In: TEÓFILO, Rodolfo. A Fome;Violação. Rio de Janeiro: J. Olympio; Fortaleza: Academia Cearense de Letras, 1979.

[3] TEÓFILO, Rodolfo. A Fome;Violação. Rio de Janeiro: J. Olympio; Fortaleza: Academia Cearense de Letras, 1979.

[4] Acerca do estilo peculiar da escrita de Rodolfo Teófilo que primava por uma letra que não negava as suas raízes regionais assevera Colares: “Para ambientes e temas agrestes, somente pode haver lugar para um estilo agreste”. (COLARES, 1979, p. xiii).

[5]O ano de 1878 desapareceu, findou-se entre os gemidos dos aflitos e as maldições dos desesperados. Em sua passagem tudo devastou; searas, rebanhos e homens! A fome e a peste encheram os cemitérios!” (TEÓFILO, 1979, p. 166).

[6] Bauman elabora o conceito do que vem a chamar de refugo humano. Este corresponderia às sobras humanas não contempladas pelos efeitos “extraordinários” do progresso econômico, indivíduos que não consumaram sua inserção enquanto consumidores num mundo cada vez mais infestado por mercadorias que demandam por fruição, ostentando estes, ao inverso daqueles que imersos nestas relações através do poder de consumir, a inglória condição de superfluidade, desprezibilidade, refugo. A esse respeito consultar: BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, pp. 53, 54, 76, 77, 98, 99.